Burnout na Comunicação: quando a criatividade adoece

Criar sob pressão cobra um preço e ele está mais alto do que nunca

Alta demanda, urgência digital e pressão por resultados vêm adoecendo profissionais da Comunicação. Com relatos que vão da exaustão física ao colapso emocional, especialistas e lideranças apontam caminhos para mudar a cultura do trabalho, antes que mais gente desmorone. 

A Comunicação é feita de prazos curtos, criatividade sob demanda, múltiplas plataformas e pressão constante. Parece até um clichê, mas por trás desse ritmo acelerado há uma crise silenciosa que ganha corpo, e voz: a do burnout. A síndrome do esgotamento profissional, que ganhou status de doença ocupacional pela Organização Mundial da Saúde (OMS), tem afetado jornalistas, publicitários, profissionais de Marketing e assessores de Imprensa com intensidade. E o que antes era confundido com "cansaço", agora é reconhecido como colapso.

"Mesmo depois de dormir, de descansar no fim de semana, a pessoa não se sente recuperada. É um cansaço persistente, físico e emocional. E, no caso da Comunicação, isso é agravado pela exposição constante, excesso de estímulos e prazos irreais", explica a psicóloga Fabiana Silva Costa, especialista em Terapia Cognitivo-Comportamental e doutora em Ciências Médicas.

Sobrecarga silenciosa

Quando ainda era estagiária Ketelin Gomes vivenciou este esgotamento em pleno início de carreira. Em 2023, com 27 anos, acumulava funções e enfrentava expectativas difíceis de cumprir. "Eu acordava às 4h para entrar às 6h, fazia o trabalho de duas ou três pessoas. Cobravam-me excelência em algo que eu não dominava, como edição de vídeo. Fui repreendida no grupo do trabalho com só 15 dias na função. Eu não dormia antes das 2h da manhã, revisando mentalmente o que não tinha dado conta de fazer."

O caso de Ketelin não é isolado e ilustra bem o "caldeirão" citado pela psicóloga: alta carga de trabalho, baixa valorização financeira e emocional, falta de suporte e um mercado competitivo que naturaliza o excesso. O impacto, segundo Fabiana, vai além do desempenho: "A pessoa começa a se sentir incompetente, perde o senso de realização e se desconecta do próprio trabalho. Isso afeta sua identidade".

O papel da gestão

No centro do debate sobre saúde mental nas empresas está a figura do gestor. Fabiana defende que a liderança precisa abandonar o modelo autoritário e se transformar em suporte emocional: "É preciso ter escuta ativa, respeitar o ritmo das pessoas e criar um ambiente onde seja possível expressar vulnerabilidades sem medo de represália."

Na Agência Bistrô, este cuidado virou programa. A head de Cultura Juliana Lazuta é uma das integrantes do comitê de saúde mental da empresa, iniciativa integrada ao modelo de gestão. "Nosso cuidado não é apenas reação à crise, mas parte da estrutura. Oferecemos até quatro sessões de terapia por mês via Conexa Saúde, além de suporte jurídico, nutricional e financeiro. Também promovemos encontros formativos e investimos em plataformas que medem clima e fortalecem o diálogo."

A Bistrô se alinha à nova NR-01, que inclui a saúde mental no Programa de Gerenciamento de Riscos. "Hoje temos baixíssima rotatividade, o que é reflexo direto do que cultivamos: vínculos consistentes, autonomia com responsabilidade e coerência entre discurso e prática", ressalta Juliana.

Depois do colapso

A escritora Carol Milters conhece de perto as camadas do burnout. Após quase 10 anos liderando equipes em uma agência de Publicidade em Porto Alegre, viveu um colapso físico, emocional e cognitivo. "Comecei a esquecer tudo, perdi a capacidade de tomar decisões estratégicas. Sentia que podia morrer dentro do escritório ou cometer um erro irreversível. O que me fez parar não foi o medo da morte,  foi o medo de errar."

Carol relata que, mesmo após o afastamento, não teve apoio ou acolhimento da empresa. "Fui apagada. O burnout escanteia profissionais do mercado. Muitos, como eu, se tornam autônomos ou empreendedores porque não conseguem voltar para ambientes tradicionais. Falta às empresas reconhecer que isso existe e que o risco é real."

Hoje, Carol mora na Holanda e coordena o 'Burnoutados Anônimos', grupo de acolhimento e reflexão sobre saúde mental no trabalho. A iniciativa nasceu da necessidade de criar um espaço seguro, com escuta empática e trocas estruturadas entre pessoas que enfrentaram - ou ainda enfrentam - os efeitos do esgotamento. "Um participante esses tempos contou que foi o ChatGPT quem recomendou o Burnoutados pra ele. Parece simbólico: até a Inteligência Artificial já entendeu que a gente precisa de apoio humano." 

A pandemia alterou dinâmicas, mas nem sempre o home office trouxe alívio. Segundo Fabiana, o impacto depende do perfil da pessoa e da cultura da empresa: "Alguns se adaptam bem, com disciplina e limites claros." Outros sofrem com o isolamento. "E se a empresa não respeita horários, mandando mensagens fora do expediente, por exemplo, isso se torna um novo estressor."

Mudança de cultura: do discurso à prática

A psicóloga é enfática ao apontar que mudanças reais começam pela gestão. "A boa comunicação e o cuidado vêm de cima. Não adianta promover ações pontuais se o gestor é hostil ou indiferente. Empresas precisam treinar líderes e criar espaços seguros para que as pessoas falem."

Já Carol defende que enfrentar o burnout não é só sobre acolher quem adoeceu, é sobre evitar que mais gente adoeça. Para isso, ela se baseia nas seis dimensões do trabalho citadas pela pesquisadora Christina Maslach, que mapeou seis fatores essenciais para compreender o esgotamento no trabalho - e que devem estar no centro das políticas de bem-estar nas empresas.

O primeiro é a carga de trabalho, que abrange o volume de tarefas, o tempo disponível para executá-las e a complexidade exigida. Quando há acúmulo, urgência constante ou falta de equilíbrio, o desgaste é inevitável. O segundo fator é a recompensa, que vai além da remuneração: diz respeito ao reconhecimento emocional, ao respeito e à valorização pelo que se entrega.

A justiça aparece como um dos pontos mais sensíveis. "Saber que sua empresa acoberta assédios ou comete ilegalidades destrói a confiança - e adoece", afirma Carol. Já a comunidade está relacionada ao senso de pertencimento e à qualidade das relações interpessoais. Ambientes marcados por isolamento, exclusão ou fofocas fragilizam o emocional das equipes.

A compatibilidade entre os valores pessoais e os da empresa também é determinante. Quando há conflitos éticos, o profissional se sente desconectado e perde o sentido do que faz. Por fim, a autonomia aparece como elemento chave para a saúde mental: é preciso ter liberdade para organizar a rotina, tomar decisões e exercer o próprio trabalho com alguma dose de controle. Em contextos engessados, de microgestão ou imposição autoritária, a motivação desaparece.

Para Carol, o burnout ainda é visto por muitas empresas como tabu - ou pior, como falha individual. "O que falta é aceitar que o burnout existe. E que suas consequências são graves. A maioria das pessoas burnoutadas acaba escanteada do mercado. Eu mesma sei que, se voltar para um escritório tradicional, não sobrevivo", afirma. "As pessoas ficam marcadas. Elas são burnoutadas."

Números não mentem

Em 2023, 421 trabalhadores foram afastados por burnout no Brasil, o maior número registrado em uma década, de acordo com o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), vinculado ao Ministério da Previdência Social. Esse crescimento foi impulsionado, principalmente, pela pandemia de coronavírus. Em 2019, o País contabilizava 178 afastamentos por esse motivo; em 2023, o número mais que dobrou, representando um aumento de 136%.

Apesar da falta de dados precisos sobre a prevalência da síndrome, estudos indicam que até 30% da população economicamente ativa brasileira pode ser afetada. 

O silêncio ainda ronda o tema. Duas fontes do mercado de Comunicação foram procuradas para esta reportagem, mas não se sentiram à vontade para falar sobre o assunto. O receio de exposição e o estigma em torno do adoecimento mental no trabalho ainda são barreiras que dificultam a construção de uma cultura mais saudável. 

Ao mesmo tempo, iniciativas importantes vêm sendo articuladas. A Associação Riograndense de Propaganda (ARP) recentemente promoveu uma palestra sobre saúde mental entre os profissionais da área. Já o Sindicato dos Jornalistas do Rio Grande do Sul (Sindjors) e o Sistema Nacional das Agências de Propaganda do Rio Grande do Sul (Sinapro-RS) também trouxeram o assunto à tona em 2024.  

Em nível nacional, a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) está conduzindo uma pesquisa sobre a saúde mental da categoria, com foco específico na síndrome de burnout. A investigação visa mapear os impactos das rotinas de trabalho, como a pressão por produtividade, a insegurança e o assédio moral, com o objetivo de embasar políticas públicas e ações de proteção. A entidade também atua em parceria com a Fundacentro em outras frentes de pesquisa sobre o tema, reafirmando que garantir um ambiente digno, ético e humano é uma pauta urgente e coletiva.



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