Uma de cada vez

Por José Antônio Moraes de Oliveira

08/08/2024 15:29
Uma de cada vez

Se quiser sobreviver, cuidado 

ao olhar por cima do ombro".

 

Provérbio irlandês.

Sempre recordo das manhãs geladas dos invernos de Porto Alegre. As ruas amanheciam desertas - apenas um ou outro morador solitário passava rente às casas, com a manta de lã enrolada no pescoço. Na cozinha, o fogão a lenha estava aceso desde cedo e aquecia toda a casa. Pela janela embaçada da sala, eu espiava o pátio encharcado, e nossa parreira nua que parecia triste e sem vida. Era ela que nos dava sombra no calor das tardes de verão, com os cachos de uvas douradas ao alcance   das mãos. 

***

Agora, é outro inverno e outra cidade. Me posto junto a uma janela embaçada, à procura de passadas paisagens. Não se vê casas de porta-e-janela nem pátios como os de antes, somente edifícios altos e espelhados que refletem o céu cor-de-chumbo.  

Teimosamente, volto ao bairro onde passei a infância e mocidade,

apesar do poeta que nos diz que "o passado nunca é como lembramos". Logo ao chegar, encontro um morador dos antigos, contando que botaram abaixo o sobrado herdado de seus pais. Passo a passo, subimos a ladeira da Vasco da Gama, toda coberta de asfalto até chegar ao novo viaduto que passa por debaixo da Ramiro Barcelos. Não se ouve o silêncio - os carros buzinam e caminhões soltam fumaça, onde o que se ouvia eram apenas bentevís e o tilintar de garrafas na carrocinha de leiteiro Arnaldo. 

Ainda assim, busco pelos fragmentos perdidos. Como a voz da mãe cantarolando na cozinha ou o sorriso do pai que entra em casa e despenteia meu cabelo.

Tento lembrar como era a cesta de vime com uvas douradas que a mãe servia de sobremesa aos domingos. Ela comentava que estava fazendo como o avô Patrício. Que colhia as uvas mais maduras e as colocava em um balde com água fresca da cacimba. Então, sentava à sombra do cinamomo e as comia uma a uma. Fazia longas pausas, passava a mão no tronco rugoso da velha árvore e falando baixinho: 

 

     "É bom comer uma de cada vez,

              assim, duram mais".

***