Uma de cada vez

Por José Antônio Moraes de Oliveira

Se quiser sobreviver, cuidado 

ao olhar por cima do ombro".

 

Provérbio irlandês.

Sempre recordo das manhãs geladas dos invernos de Porto Alegre. As ruas amanheciam desertas - apenas um ou outro morador solitário passava rente às casas, com a manta de lã enrolada no pescoço. Na cozinha, o fogão a lenha estava aceso desde cedo e aquecia toda a casa. Pela janela embaçada da sala, eu espiava o pátio encharcado, e nossa parreira nua que parecia triste e sem vida. Era ela que nos dava sombra no calor das tardes de verão, com os cachos de uvas douradas ao alcance   das mãos. 

***

Agora, é outro inverno e outra cidade. Me posto junto a uma janela embaçada, à procura de passadas paisagens. Não se vê casas de porta-e-janela nem pátios como os de antes, somente edifícios altos e espelhados que refletem o céu cor-de-chumbo.  

Teimosamente, volto ao bairro onde passei a infância e mocidade,

apesar do poeta que nos diz que "o passado nunca é como lembramos". Logo ao chegar, encontro um morador dos antigos, contando que botaram abaixo o sobrado herdado de seus pais. Passo a passo, subimos a ladeira da Vasco da Gama, toda coberta de asfalto até chegar ao novo viaduto que passa por debaixo da Ramiro Barcelos. Não se ouve o silêncio - os carros buzinam e caminhões soltam fumaça, onde o que se ouvia eram apenas bentevís e o tilintar de garrafas na carrocinha de leiteiro Arnaldo. 

Ainda assim, busco pelos fragmentos perdidos. Como a voz da mãe cantarolando na cozinha ou o sorriso do pai que entra em casa e despenteia meu cabelo.

Tento lembrar como era a cesta de vime com uvas douradas que a mãe servia de sobremesa aos domingos. Ela comentava que estava fazendo como o avô Patrício. Que colhia as uvas mais maduras e as colocava em um balde com água fresca da cacimba. Então, sentava à sombra do cinamomo e as comia uma a uma. Fazia longas pausas, passava a mão no tronco rugoso da velha árvore e falando baixinho: 

 

     "É bom comer uma de cada vez,

              assim, duram mais".


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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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