Trilhos enterrados

Por José Antônio Moraes de Oliveira

 

"A memória sabe de mim mais do que eu".
Eduardo Galeano.

 Hesitei por muito tempo para revisitar as ruas do bairro de infância em Porto Alegre. Sabia que viagens ao passado trazem nostalgias e tristezas. As lembranças não nos abandonam e tem por hábito aparecer quando menos se espera. Refaço agora os passos antigos na mesma calçada da avenida que percorria nas idas e voltas do Ginásio do Rosário. A paisagem mudou - não há mais casarões franceses nem paralelepípedos. Carros e ônibus passam velozes pelo asfalto que enterrou os trilhos de aço por onde os bondes Prado e Independência rodavam ruidosos e sem pressa.

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Outros tempos, quando as pessoas tinham tempo sobrando. Ao longo do percurso, havia paradas obrigatórias, com os bondes esperando por seus passageiros. Até se contavam que na linha Duque os motorneiros tocavam a sineta para apressar um ou outro passageiro atrasado.

No trajeto da Praça Júlio de Castihos até a Praça Quinze sobrava tempo para ler o Diario de Notícias ou o Correio do Povo da primeira à última página. Alguns deixavam seu jornal dobrado no banco, uma gentileza anônima aos passageiros da viagem de volta. Outros tempos, outros hábitos, quando se oferecia a mão para uma senhora descer do alto estribo. Era divertido observar o comportamento das pessoas nas longas viagens pela cidade. Alguns liam e reliam os cartazes anunciando xaropes para tosse e pílulas para prisão de ventre. Uns davam arrepios, como o pescador da Emulsão de Scott com seu imenso bacalhau às costas. Ou cômicos, como o sorridente e meloso galã da Glostora, ou assustador como o homem estrangulado do Xarope São João.

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Algumas das linhas eram extensas, alcançando os bairros mais distantes como Partenon, Glória e Teresópolis. Ao final da linha e nos cruzamentos, acontecia um ritual que movimentava condutor e motorneiro. Eles desciam dos bondes, mudavam a agulha dos trilhos e alternavam as hastes no teto dos carros, que ligavam à rede elétrica aérea. Enquanto isso, o cobrador se ocupava, dando um golpe seco revertendo os encostos dos bancos de madeira, para a viagem de retorno. Os bondes eram pontuais, cumprindo uma tabela de horário à moda inglesa. Começavam às 6 da manhã e eram recolhidos à meia-noite. Quando terminava a última sessão de cinema no Imperial, Roxy ou no Rex, era preciso correr Galeria Chaves abaixo para não perder o último bonde. Quem ficava para trás, para um bauru com suco de laranja do Matheus, voltava a pé para casa.

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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