Quando eu era milionário

Por Flávio Dutra

08/07/2024 15:06 / Atualizado em 08/07/2024 15:05
Quando eu era milionário

Na semana passada comemorou-se 30 anos da implantação do Plano Real. Comemorou-se é um termo justo pelo que representou para todos os brasileiros os efeitos do Plano, sendo o principal deles a contenção da disparada da inflação. Só quem viveu o período de desvalorização, dia a dia,  da moeda e dos nossos ganhos para avaliar os benefícios do advento do Real. Tratei da questão num texto de 2009, que, por oportuno, continua valendo e reproduzo a seguir.

Jornalista tem mania de guardar papéis, recortes de jornal, contas pagas, documentos e similares, na esperança de que um dia vai organizar tudo e que aquele manancial terá alguma utilidade. Ledo engano. A papelada acumulada serve apenas para atrair poeira, mofo e traças.

A importância que determinado documento tinha há 15 ou 20 anos se diluiu no tempo e o artigo de jornal que causou tanta polêmica perdeu seu valor. Com os recursos digitais nem faz mais sentido manter um arquivo físico nos moldes antigos.

Pois, semana passada decidi enfrentar o desafio de vasculhar meus guardados para uma sessão de descarte e encontrei verdadeiras preciosidades. Descobri, por exemplo, que já fui milionário. A descoberta se deu quando encontrei a declaração de renda de 1985, atestando que eu recebi naquele ano a fortuna de 60 milhões, 286 mil cruzeiros, o que representava, em média, um salário de mais de 4 milhões e 600 mil por mês. Uma Mega Sena acumulada! Só o Imposto de Renda me mordeu em mais de 6 milhões e 700 mil retidos na fonte e ajudei a diminuir o déficit da Previdência contribuindo com 5 milhões e 400 mil.

E havia ainda a confusão com a troca de moedas. Em 1988, por exemplo, pagava 15 mil cruzados de mensalidade na creche de um dos filhos e, no ano seguinte, 29 mil cruzados novos para outro, numa escola particular. Uma verdadeira fortuna.

Devo ter empobrecido com o passar dos anos, pois em 1991 recebi míseros 5 milhões, 279 mil cruzeiros. No ano seguinte fui obrigado, inclusive, a vender um Passat, ano 78, por 2 milhões e 700 mil cruzeiros. Era dura a vida de milionário naqueles tempos de inflação galopante.

O poder aquisitivo ficava corroído da noite para o dia. A moeda ganhava novo nome a cada plano econômico, mas a desejada estabilidade durava pouco tempo ou era mantida artificialmente. Os preços eram remarcados todos os dias e o valor de hoje já não vigorava no dia seguinte. O overnight, uma aplicação bancária corrente na época, dava alguma proteção aos nossos ganhos e fez a fortuna de muitos espertalhões. Para se ter uma ideia de como funcionavam as contas públicas, o governo Collares (1990-94) se financiou graças à inflação alta: era só atrasar, sem correção monetária, o pagamento aos fornecedores por um mês ou pedalar o aumento do funcionalismo e o caixa estava garantido.

A empresa onde trabalhava na época decidiu, para preservar minimamente o poder aquisitivo dos funcionários, pagar os salários a cada 15 dias e depois semanalmente. Um expediente comum era o cheque pré-datado que permitia algum fôlego às finanças pessoais. Era comum também o pedido de antecipação de parte do 13º salário, porque o montante no final do ano, com a correção monetária, ficava recomposto e ainda garantia-se um plus nos ganhos.

E assim sobrevivíamos quase numa boa, acostumados à espiral inflacionária, consumindo um pouco aqui um pouco ali, administrando as contas, fazendo ginástica com os salários e até planos para o futuros, na certeza de que mais dia menos dia nossa moeda deixaria de nos envergonhar.

Então, em 1994 veio o Plano Real. E eu que estava cobrindo a Copa do Mundo nos Estados Unidos acabei não sofrendo o primeiro impacto do novo plano. As informações vindas do Brasil davam conta que, depois de sucessivos planos econômicos malsucedidos, havia uma justificada desconfiança da população.

De volta á terrinha, a primeira coisa que fiz ao chegar no Galeão foi trocar dólares por reais e aí tomei contato com aquelas notas feias, diferentes uma das outras, eu que estava quase americanizado depois de 55 dias nos EUA, pagando e recebendo em verdinhas. Economizei uma boa grana em dólares naquela viagem, mas mesmo assim não levei vantagem porque no início do Plano Real o dólar valia tanto quanto a nova moeda brasileira. Era 1 por 1.

E lá se foi mais uma chance de reiniciar a vida de milionário. Fiquei curtindo essa frustração até que descobri no site da Fundação de Economia e Estatística (www.fee.tche.br) um programa que converte os valores monetários, atualizando-os no tempo. E constatei que a minha condição de milionário no passado era pura ilusão, fruto da mágica operada nas trocas de moedas, que perdiam zeros para passar a impressão de que o nosso dinheiro se fortificava.

Os mais de 60 milhões que recebi em 1985, na verdade, equivaleriam hoje a pouco mais de 57 mil reais, ou 4,3 mil reais/mês, um salário nada desprezível. Os 5,2 milhões de 1991 seriam, em valores atuais, cerca de 30 mil reais. O Passat que vendi por 2,7 milhões em 1992 valeria hoje, só para efeito de exercício financeiro, uns 6,7 mil reais. A mensalidade da creche que custava 15 mil cruzados ficaria por 194 reais e a escola que cobrava 29 mil cruzados novos receberia hoje, se os proprietários não fossem gananciosos, exatos 208 reais.

Como se observa, nem precisa ser versado em macroeconomia para constatar a equivalência nos valores entre um período e outro, o que me leva a outra constatação: havia muito de efeito psicológico na tal de inflação. Mesmo assim, não sinto saudades daquele tempo. Prefiro a estabilidade de agora que me assegura um amanhã sem sobressaltos.

Para se ter uma ideia do que já enfrentamos em termos de mudanças de padrão monetário,  de 1967 a 94 foram sete planos, ou quase uma mudança a cada quatro anos. Do Cruzeiro de 1942, passamos ao Cruzeiro Novo (1967), Cruzeiro novamente (1970), Cruzado (1986), Cruzado Novo (1989), Cruzeiro de volta (1990), Cruzeiro Real (1993) e Real (1994) e, ainda,  a moeda de transição URV adotada no início do Plano.