O PL que transforma a vítima em culpada

Por Márcia Martins

Uma votação relâmpago, que durou exatos 23 segundos, pretende condenar a vítima de estupro, que optar pelo aborto, em culpada. Em mais uma manobra antidemocrática, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PL/AL), pautou a matéria, que passa a tramitar em regime de urgência, sem aviso e sem anunciar o número do projeto. Assim, a vida das mulheres, principalmente crianças que se tornam mães antes dos 14 anos ao sofrerem violência sexual, passa a ser decidida por um Congresso Nacional infestado pela extrema direita nefasta, constituído pelas bancadas fundamentalistas e conservadoras.

Trata-se do Projeto de Lei 1904/24, aprovado nesta quarta-feira (12/junho), na Câmara dos Deputados. Conhecido como PL da Gravidez Infantil, ele equipara a realização do aborto a homicídio. E deverá ser votado no plenário da Casa, sem passar pelas comissões pertinentes. É muita crueldade punir duplamente mulheres, moças, meninas, crianças que engravidaram vítimas de um estupro, ao tornar a pena para a realização do aborto maior do que a do estuprador.

No Brasil, segundo informações da deputada federal Sâmia Bomfim (PSOL/SP), a grande maioria das vítimas de violência sexual são crianças. Anualmente, cerca de 20 mil meninas com menos de 14 anos se tornam mães. São números assustadores e que podem aumentar se o PL da Gravidez Infantil for aprovado, uma vez que tenderá a inibir a realização dos abortos frente ao absurdo do tamanho da pena. "Atacar o direito ao aborto em casos de estupro é destruir vidas e infâncias", revela. Sâmia publicou no seu twitter que os fundamentalistas se preocupam mais em revitimizar meninas e mulheres do que em avançar no rigor da investigação e responsabilização e estupradores.

Na prática, o PL 1904/24 propõe uma alteração na lei penal sobre o aborto, que atualmente permite que qualquer pessoa que engravidar após um estupro, ou com risco de vida ou que apresente um diagnóstico de anencefalia fetal, aborte, sem limite de idade gestacional. Se a lei passar, proibindo a realização do aborto legal acima de 22 semanas em caso de estupro, não temos dúvida que as principais afetadas serão as crianças. Uma vez que, em casos de abuso sexual, existe mais demora em descobrir e identificar a gestação, fazendo com que a vítima procure os serviços de aborto com idade gestacional avançada.

Tal projeto impõe a mulheres e crianças vítimas de violência sexual a obrigação de levar adiante uma gravidez indesejada. A vítima pode ser condenada a até 20 anos de prisão por homicídio (o dobro a uma pena que é dada ao estuprador) se interromper a gestação a partir da 22ª semana. Isso nem é um retrocesso. É uma barbárie entender que uma mulher estuprada deve ser obrigada a carregar em seu ventre e gerar o feto fruto de um crime. E se não o fizer, irá para a cadeia por um período maior que o do criminoso que a estuprou. Um projeto abjeto.

É quase surreal - mas é verdade - que a sociedade brasileira, com inúmeros problemas a resolver, está discutindo se uma mulher estuprada e um estuprador tem o mesmo valor para o direito. Ou ainda, como escreveu o ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, "se um estuprador pode ser considerado menos criminoso que uma mulher estuprada".

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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