In forma

Por Marino Boeira

DE VOLTA AOS NOVOS TEMPOS

As águas das enchente já baixaram e no seu lugar os meios de comunicação estão sendo inundados por uma mistura indigesta de sentimentos opostos. Somos ao mesmo tempo herdeiros dos velhos gaúchos altaneiros, a última barreira do Brasil contra os espanhóis predadores que queriam trocar a nossa língua portuguesa, a última flor inculta do Lácio, pela sua língua de bárbaros castelhanos e os novos pobrezinhos da nação que precisam do apoio dos irmãos do resto do País para sobreviver.

Velhos e novos termos são buscados nas páginas dos dicionários e nos sites de divulgação da psicologia para caracterizar os dias de hoje. Somos agora os herdeiros de um passado mitológico que existe apenas na imaginação de alguns e os resilientes que precisam se adaptar à nova realidade.

As diferenças de classe desapareceram, pelo menos na mídia e estamos "todos juntos batalhando pela reconstrução do Rio Grande". É comovedora ver nos anúncios das instituições e grandes empresas a preocupação com aqueles que "perderam tudo nas cheias". São anúncios coloridos e certamente caros, quase sempre com a nossa bandeira ilustrando o desejo de um futuro brilhante para todos .

Nos jogos de futebol, aqueles craques que até ontem só pensavam em aumentar seus ganhos estão todos solidários com os gaúchos. Velhas diferenças que no passado tornavam interessantes esses jogos, desapareceram. Estamos agora todos juntos pelo Rio Grande, colorados e gremistas... e bola pra frente.

Novos heróis surgiram de onde menos se esperava para nos representar. O cavalo Caramelo em cima de um telhado é o novo símbolo da resistência ( a tal resiliência) do gaúcho. A cadela Esperança com seu olhar lânguido, nos braços da Primeira Dama, é um minuto de ternura em meio às agruras da tempestade.

No passado, alguém cheio de ironia, disse que o sonho do gaúcho era ser um avião da Varig. Pelo menos melhoramos nesse aspecto, passando de um objeto metálico para seres vivos.

Os novos tempos formam também o cenário ideal para os pregadores do fim-de-mundo em razão dos descuidos dos homens pela natureza. É a hora da vingança dela contra os que a maltratam há muito tempo. A velha verdade de que a natureza existe para servir o homem e não o contrário, é esquecida. Como esquecida também é a verdade de que a destruição da natureza não é obra do homem em geral, mas de um sistema, o capitalismo, que visa apenas o lucro.

Finalmente, os novos tempos que nasceram com o recuo das águas se transformaram no cenário ideal da batalha política pelos cargos que as eleições estão pondo em disputa.

O presidente Lula, à frente, transformou as ruínas de cidades destruídas pelas enchentes nos palcos de sua pregação em favor de uma candidatura, a do seu ministro Paulo Pimenta.

"Essa vez vai dar ", deve estar pensando ele, quando oferece migalhas para os mais pobres e milhões para os empresários reconstruírem seus impérios.

Até o futebol está de volta, ao menos na televisão, e logo, logo, estaremos vivendo a velha normalidade. Pelo menos enquanto a Revolução Brasileira for apenas uma utopia no horizonte.

Autor
Formado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), foi jornalista nos veículos Última Hora, Revista Manchete, Jornal do Comércio e TV Piratini. Como publicitário, atuou nas agências Standard, Marca, Módulo, MPM e Símbolo. Acumula ainda experiência como professor universitário na área de Comunicação na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e na Universidade do Vale do Rio do Sinos (Unisinos). É autor dos livros 'Raul', 'Crime na Madrugada', 'De Quatro', 'Tudo que Você NÃO Deve Fazer para Ganhar Dinheiro na Propaganda', 'Tudo Começou em 1964', 'Brizola e Eu' e 'Aconteceu em...', que traz crônicas de viagens, publicadas originalmente em Coletiva.net. E-mail para contato: [email protected]

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