O atentado e o espetáculo

Por Angelo Muller, para Coletiva.net

Uma campanha polarizada. Dois candidatos caricatos. Um por seu estilo, outro pelos constrangedores deslizes cognitivos. Então, o disparo. Mesmo a 120 metros de distância, com treinamento e os equipamentos disponíveis atualmente, um atirador de elite acertaria seu alvo com precisão em pelo menos nove de cada dez tentativas. Foi um leve desvio de cabeça de Trump que fez a bala, direcionada para o hemisfério direito de seu crânio, pegar de raspão em sua orelha.

De uma hora para outra, todas atenções dos americanos voltaram-se para a Pensilvânia.  Em seus imaginários, a distância de dez centímetros separava a visão de dois mundos completamente diferentes. Enquanto isso, Trump, triunfante, com o sangue escorrendo pelo rosto, cerrava o punho e dava, ao início deste século, uma de suas imagens mais marcantes.

O disparo que quase tirou a vida do candidato republicano não é novidade. A história dos Estados Unidos tem sido pontuada por atentados a chefes e candidatos a chefe de estado desde Abraham Lincoln, em 1865. Um evento a cada 12 anos em média. Mais do que um por geração. 

Logo depois, os institutos de pesquisa já estavam medindo o impacto do fato sobre a corrida presidencial. Algumas análises apontavam o crescimento de Trump em três pontos percentuais e a manutenção de uma pequena vantagem, o que é uma característica dos ambientes políticos muito polarizados. Mas definitivamente, o "momento" emocional da campanha estava em suas mãos. A leitura que ele faria das emoções geradas pelo atentado nos eleitores norte-americanos, provavelmente ditaria, daquele momento em diante, o rumo da eleição. 

Enquanto isso, os Democratas, que ainda precisam explicar por que jogaram Joe Biden aos leões, mesmo conhecedores da condição lamentável do atual presidente, tratavam de fazer as suas interpretações do grande quadro. Depois de uma performance sofrível no primeiro debate, que já levantava entre os correligionários os primeiros manifestos em defesa de tirar Biden da disputa, ficou evidente que isso precisava ser feito. A questão que ficaria pendente é se a substituição do candidato seria o suficiente. Com a bênção de Barack Obama, Bill e Hillary Clinton além do próprio Biden, Kamala Harris, atual vice-presidente, reuniu o apoio necessário e passa a ser a virtual indicada do partido para a disputa com Trump. 

Figura ligada mais às mesas do que às massas, com raíz na política institucional, Kamala é reconhecida entre seus pares como alguém que não tem no carisma o seu forte. Por isso mesmo, tratou de entrar na campanha trazendo toda a energia que faltava a Biden. O contraste entre um candidato quase moribundo e Kamala ficou evidente e a estratégia, por enquanto, parece estar dando certo. 

A atenção que Trump havia conquistado de todos os americanos voltou a ficar dividida. O líder do MAGA falhou ao não tirar proveito do atentado para propor uma campanha mais pacífica e voltada para propostas. Isso provavelmente cristalizaria a opinião pública a seu favor, além de garantir o seu protagonismo nos movimentos mais decisivos desse processo eleitoral. Ao contrário, Trump apenas ajustou a mira e começou a disparar. 

Como resultado, as últimas pesquisas já começam a mostrar Kamala na liderança, muito embora a narrativa adotada por sua campanha continue apostando mais no medo do que na esperança. Em seu vídeo mais recente, sua equipe retrata Trump como criminoso e uma ameaça a avanços conquistados durante o governo Biden. Ao mesmo tempo, aposta na mobilização de minorias e grupos desassistidos para manter acessa a ideia da luta entre liberais e conservadores. Como se esse fosse o grande problema. Não há uma palavra condenando a violência. O atentado, aparentemente, foi normalizado. Absorvido como parte do espetáculo.

Está claro que Democratas e Republicanos parecem ter adotado definitivamente a lógica da polarização e esquecido que também seria possível fazer campanha com respeito aos que pensam diferente. A questão mais importante de 2024, que era a desescalada necessária para evitar que outros eventos de violência política continuassem a acontecer e que tivéssemos alguns dos debates políticos mais pobres de toda a história da democracia parece que, mais uma vez, irá ficar para depois.

Angelo Muller é Estrategista de Marketing Político, Dr em Comunicação e Professor do Curso de Comunicação Política da PUCRS

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