A Jornada de "Vitória": Independência e Autonomia na Deficiência

De Christian Jung, para o Coletiva.net

Vez ou outra, escrevo sobre minha experiência como pai da Vitória. Para quem não me conhece ou não leu nada a respeito do que já relatei sobre deficiência, Vitória teve um quadro de encefalite ao nascer. Trata-se de uma inflamação no cérebro que ocorre quando um vírus, em alguns casos bactérias, ataca diretamente, podendo também ser desencadeada por outros fatores.

A questão é que um diagnóstico desses pode levar a uma série de limitações que dependerão da área afetada no cérebro. Enquanto a Vitória se desenvolvia, a limitação mais evidente era a hemiplegia, uma paralisia parcial de um lado do corpo. No caso dela, no lado esquerdo. As demais repercussões costumam aparecer quando o cérebro começa a amadurecer e as reações do bebê deixam de ser meros reflexos, tornando-se ações programadas.

Surgiam dúvidas quanto à audição, visão e movimento, incluindo a questão de saber se ela caminharia ou não; enfim, o que teria sido preservado no cérebro e o que a estimulação precoce poderia vir a desenvolver em outras áreas, graças à neuroplasticidade. Foram dois meses em coma, um sofrimento que não cabe explicar aqui porque venho para falar sobre as questões da criança que virou adulta.

Trinta anos se passaram. Eu tinha apenas 27 anos. Hoje, tenho 57. Nem sei dizer quantos momentos de angústia e apreensão vivi, e por mais que me ache cascudo no assunto, ainda continuo experimentando essas sensações. Superamos etapas e enfrentamos muitos desafios, inclusive na escola.

Lembro quando recebemos um convite para que procurássemos outros estabelecimentos de ensino para ela, como no colégio Conhecer. Esse caso foi surpreendente para nós. A escola tinha uma proposta de afetividade baseada em liberdade, responsabilidade, solidariedade e respeito às diferenças. Prometia uma educação democrática, reconhecendo os indivíduos como diferentes e buscando o desenvolvimento humano. Claro, isso até que a criança começasse a dar trabalho. Então, o melhor é chamar os pais e pedir para levá-la a outra instituição. Mas esse não é o ponto principal desse emaranhado de sentimentos. Porque só sobre escola teria muito para contar também. Quero falar sobre independência, que no contexto da deficiência se diferencia da autonomia, embora uma dependa da outra.

Independência é a dissociação de um ser em relação a outro, do qual dependia ou era por ele dominado. De certa forma, nenhum de nós é independente. Precisamos do outro, estamos conectados às pessoas, por vivermos em sociedade, e é impossível contar somente consigo. Em casa, no trabalho, no dia a dia, precisamos das pessoas. Estamos sempre ligados a alguém, seja por necessidade física, afeto ou paixão.

É aí que as palavras "independência" e "autonomia" se separam. Para quem tem um filho deficiente, o que mais nos liberta é a capacidade deles de serem autônomos. Saber que irão ao banheiro e cuidarão de suas necessidades. Que colocarão as roupas na máquina de lavar, adicionarão sabão e estenderão no varal. Que vestirão suas roupas e prepararão a mesa para o café. Que esquentarão o leite e passarão a manteiga. Que conseguirão abrir os potes. Que chamarão um carro de aplicativo ou se descerão na parada certa do ônibus.

Vamos além. Como será a vida social? Algo que, sem dúvida, depende muito da atitude dos pais em promover esses encontros e não deixá-los escondidos em casa, o que parece bem mais fácil! Se terão namorado, se irão amar, se irão noivar, ter relações sexuais, casar e talvez ter filhos? Se conseguirão ter parcial ou total autonomia para lidar com a vida, principalmente depois que nós, pais, não estivermos mais por aqui?

Autonomia é tudo, mas com déficit cognitivo e algumas limitações corporais, Vitória, com 30 anos, ainda necessita de cuidados. É preciso cuidar de sua higiene pessoal, ainda que tome banho sozinha e se vista sozinha. É necessário levá-la e buscá-la do trabalho, e que bom que trabalha! E diga-se de passagem, que com toda limitação, se destaca entre os colegas, que são extremamente queridos e receptivos às suas limitações, na Farmácia Droga Raia. E o que fazer se ela tiver uma crise de ausência e não estiver acompanhada? Crises que nunca sabemos quando irão acontecer. Que inclusive já ocorreu no período de trabalho!

Ela tem um noivo. Ele, com síndrome de Down, enfrenta diferentes problemas. Tem mais autonomia, mas ainda assim requer muita atenção porque precisa ser assistido, com restrições à saúde decorrentes da síndrome. Observação com as necessidades básicas de higiene, ainda que faça muitas coisas com autonomia. Diga-se de passagem, bem mais que a Vitória.

O sonho deles é se casar e viver em uma casa como quem não tem limitações. Quiseram falar sobre seus corpos. Marcaram consulta com a neurologista, que, em sua visão, era a pessoa certa para explicar sobre a relação sexual. Aprenderam a conhecer seus corpos, tomam banho juntos e dormem na mesma cama quando um está na casa do outro. O problema é que a vida lhes colocou desafios, muitos dos quais aprendemos juntos a enfrentar, mas ainda necessitam de assistência.

Autonomia plena não terão, porque existem barreiras intransponíveis, mas isso não é um fim. Até porque tantos outros obstáculos que nos foram dados, foram ultrapassados. O que acontece agora é que já não são mais crianças, são adultos enfrentando a batalha de serem atípicos, e a nossa angústia, enquanto pai e mãe, enquanto sogro e sogra, não é a limitação que a vida lhes impôs, mas quem lhes assistirá quando, neste universo, não pudermos mais estar presentes.

Como bem disse Cora Coralina: "Todos estamos matriculados na escola da vida, onde o mestre é o tempo."

Christian Jung é publicitário, locutor e mestre de cerimônias

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